Introdução
Com o anúncio tarifário de Trump, talvez estejamos a assistir ao maior choque politicamente desferido ao capitalismo global das últimas décadas, só com paralelo histórico no choque Volcker, do início dos anos oitenta, quando as taxas de juros norte-americanas quase atingiram 20%. É certo que o aumento das tarifas anunciado no dia dois de abril foi parcialmente revertido passada uma semana. A turbulência que tomou conta dos mercados financeiros - particularmente o dos títulos de tesouro norte-americanos, espinha-dorsal dos mercados financeiros globais- assim o obrigou. No entanto, a versão atenuada das tarifas continuará a implicar uma mudança estrutural na economia internacional. O mínimo agora mantido de 10% aplicadas a todos os países, em quase todos os produtos, combinado com os novos 125% de tarifa aplicados aos produtos chineses - com excepções, cujo número vai inevitavelmente aumentar - produz uma alteração nos termos de troca norte-americanos não muito diferente da inicialmente apresentada.
As reacções à esquerda a este aumento tarifário denotam a desorientação intelectual e política reinante. A versão mais comum é a da “loucura” de Trump e, por associação, da “burrice” dos seus “deploráveis” votantes nos EUA. As tarifas estariam no domínio político do irracional económico, causadoras de custos acrescidos e ineficiência, como mostrado nos principais manuais de economia internacional. Olhando unicamente para o efeito das tarifas enquanto aumento de preços das importações, o choque seria traduzido em inflação e recessão. Restar-nos-ia a oposição de todas as mentes “sãs”, numa aliança internacional, da direita à esquerda, contra as barreiras ao comércio internacional que tornam o nosso consumo barato, combinada com a defesa de estratégias nacionais de diversificação de mercados externos. (Para uma análise crítica da visão convencional do comércio internacional, que apoia intelectualmente este tipo de posição, escrevi, com João Rodrigues, este capítulo. Penso que mantém toda a atualidade.)
Quase sem voz no debate público, uma visão mais sofisticada, que toma as tarifas como um instrumento económico de protecção e desenvolvimento nacional contra os desmandos do capital internacional, aponta para a ineficácia de tarifas cegas, que não discriminam setores. Sem o acompanhamento de outros instrumentos de política industrial, debatidos neste substack, as tarifas estarão condenadas a falhar no propósito de reindustrialização. Ademais, sem uma estratégia tarifária clara e consistente, a incerteza toma conta das decisões de investimento e consumo, com consequências necessariamente negativas para o crescimento económico.
O ensaio de política industrial tentado pela administração Biden parece estar agora condenado. Pelo contrário, a par da política comercial agressiva, assistimos a uma ofensiva austeritária sobre a administração pública, liderada por Elon Musk, que inevitavelmente terá efeitos macroeconómicos negativos na despesa pública, no consumo e no investimento. O plano consiste, portanto, em fechar ao máximo a economia norte-americana da concorrência externa e, através da combinação entre austeridade, impostos mais baixos e re-regulação conforme ao mercado, possibilitar uma ofensiva interna do capital sobre o trabalho. O custo de uma recessão será o preço a pagar por uma reconfiguração da economia norte-americana, tal como aconteceu com a recessão que se seguiu ao choque Volcker. Esse foi então o preço do fluxo de capital atraído pelas elevadas taxas de juro. O dólar restabeleceu-se como quase “moeda-mundial”, no contexto do fim da convertibilidade em ouro. O comércio e fluxos de capital entre países é feito primordialmente nesta moeda.
Hoje, vivemos um momento parecido. O objectivo explícito da administração Trump é o da redução do crónico défice externo, um objectivo sensato, com o qual poucos discordarão. As tarifas procuram mudanças de preços relativos por forma a tornar as importações menos competitivas, ao mesmo tempo que se espera que a receita advinda sirva para financiar uma redução de impostos sobre o capital. No entanto, como aponta o presidente do influente “Conselho de Conselheiros Económicos”, Stephen Marin, num artigo publicado em 2024, o que é entendido como grande problema para os EUA é o seu dólar forte. O seu papel de “quase moeda-mundial” garante-lhe procura permanente, o que se traduz em fluxos de capital (barato) aos EUA, sobrevalorizando a sua moeda e minando a sua competitividade externa. Os EUA não estão dispostos a abdicar do “privilégio exorbitante” da máquina que produz a quase “moeda-mundial”. As recorrentes ameaças aos países emergentes que ensaiam alternativas ao dólar nas suas transações estão aí para o confirmar.
Através do anúncio tarifário, os EUA procuram conseguir negociar tarifas comerciais e, sobretudo, um acordo monetário com os bancos centrais de outros países que conduza à desvalorização do dólar, sem colocar em causa o seu papel na economia mundial. Não seria nada de inédito. Foi o que aconteceu com os acordos de Plaza de 1985, quando as principais potências do mundo capitalista se juntaram no hotel Plaza de Nova Iorque e acordaram um esforço concertado de desvalorização do dólar. A presente tentativa de novo acordo, não por acaso, tem sido apelidada de acordo de Mar-a-Lago, resort e residência de Trump.
Se a política económica norte-americana está longe de ser o resultado de um maluco, também não devemos exagerar a sua coerência. O recuo das tarifas foi resultado da reação não esperada dos mercados financeiros e não de uma qualquer estratégia genial de negociação. A estratégia acima enunciada está longe de ser consensual dentro da própria administração, a começar pelo sector financeiro, que seria um dos perdedores de um cenário de dólar desvalorizado e menores fluxos de capital estrangeiro.
Todavia, existem dois factores políticos que podem ajudar à prossecução desta estratégia económica nos próximos tempos, já notados no anterior artigo aqui publicado. O primeiro diz respeito ao que aqui escrevi em janeiro: a concorrência que as frações do capital norte-americano, nomeadamente o dito tecnológico, enfrentam do capital chinês, realinhando-se com o seu Estado numa ofensiva que tem as tarifas de 125% como símbolo máximo. O segundo, mais significativo à esquerda, é a popularidade desta ofensiva comercial dentro de vastos setores da classe trabalhadora norte-americana. Não por acaso, um dos sindicatos mais militantes da atualidade, o UAW, do sector automóvel, manifestou o seu apoio às tarifas de Trump, conquanto não o apoie, nem sequer apoie o modelo “cego” de tais tarifas. Dois livros ajudam-nos a pensar o porquê deste alinhamento e como agir a partir daqui: os recentemente publicados, Trade wars are class wars de Michael Pettis e Matthew Klein e Sinews of War and Trade de Laleh Kalili.
Guerra comercial é guerra de classes
O argumento do primeiro livro de Michael Pettis e Michael Klein ganhou particular fama nas últimas semanas, com Pettis inúmeras vezes citado e convidado na imprensa económica anglo-saxónica. O argumento do livro é razoavelmente simples. O aumento da desigualdade interna nas grandes economias mundiais resultou em desequilíbrios macroeconómicos. Estes, por sua vez, desembocaram na crise financeira de 2008 e na atual guerra comercial. Aquilo que é interpretado como guerra entre países é, na verdade, resultado das tensões sociais entre países. Três grandes blocos são analisados: China, EUA e União Europeia. Focar-me-ei aqui nos dois primeiros, já que os desequilíbrios macroeconómicos europeus estão sobejamente estudados e denunciados.
Começando pela China, sem negar o salto na qualidade de vida de centenas de milhões de trabalhadores chineses, resultado da gestão política da questão social, os autores argumentam que os salários e a evolução das condições laborais estiveram sempre longe do ritmo espectacular do crescimento económico. Repressão dos movimentos independentes de trabalhadores, negligência sobre as consequências ambientais e humanas do processo de industrialização e taxa de câmbio propositadamente desvalorizada conseguiram conduzir a economia chinesa a taxas de investimento extraordinárias, sempre acima dos 40%. O consumo, por sua vez, diminuiu em termos relativos desde o início dos anos oitenta, denunciando a desvalorização relativa do trabalho. Este foi, portanto, um modelo de crescimento assente na competitividade exportadora e na acumulação de excedentes externos. Tal processo só foi possível devido às inovações tecnológicas (por exemplo, a contentorização do comércio internacional) e políticas dos últimos 40 anos (liberalização comercial) que conduziram ao surgimento das cadeias globais de valor, com a produção industrial fragmentada, dividida entre vários países, mas concentrada na Ásia. Com forte política industrial, crédito dirigido pelo Estado e uma vasta classe trabalhadora, a China conseguiu uma das transformações económicas mais espectaculares da história da humanidade, hoje com capitais nacionais na liderança internacional de vários setores.
Os EUA viveram uma situação simétrica, já descrita no último texto aqui publicado. Se, por um lado, o processo de desindustrialização conduziu a uma crise social nos antigos centros industriais, o capital norte-americano beneficiou, e promoveu, esta reorganização da economia internacional, especializando-se nos sectores dos serviços, da finança e das tecnologias de ponta, do software ao armamento. Na verdade, a ofensiva sobre o trabalho nos EUA deveria ter conduzido, tal como na China ou na Alemanha, a uma situação similar de acrescida competitividade externa. No entanto, o papel do dólar como quase moeda mundial e consequente afluxo de capital excedentário da China e outros países, conduziu à lucratividade desmesurada do seu setor financeiro e ao aumento do endividamento interno dos trabalhadores. Este endividamento anima setores como o imobiliário e permite a sustentação de padrões de consumo num cenário de estagnação ou degradação salarial. O resultado é um dólar sobrevalorizado e um défice comercial permanente.
O aumento da desigualdade e os desequilíbrios macroeconómicos internacionais, resultaram, segundo os autores, num excesso de capital, concentrado em poucas mãos. Num mundo com reduzidas oportunidades de investimento produtivo, este excesso de capital conduziu, por um lado, ao embaratecimento dos bens de capital e, logo, dos preços dos produtos industrializados, e, por outro lado, a um aumento do investimento “não produtivo”, desperdiçado, por exemplo, no imobiliário chinês ou na especulação financeira de Wall Street. Neste quadro, a antipatia popular com o comércio internacional é o resultado de anos de estagnação económica e social.
Se os autores são céticos em relação à presente estrutura do comércio internacional, eles também são críticos da abordagem de uma das personagens mais influentes na atual administração Trump, Peter Navarro. Para Navarro, o que conta são as relações bilaterais de comércio e suas declinações financeiras. As tarifas discriminatórias aparecem, assim, como instrumento preferencial de política bilateral. Pettis e Klein mostram como a contabilidade do comércio internacional é uma ficção, viciada pela fragmentação das cadeias globais de valor, pela localização de portos de entrada de mercadorias e, cada vez mais, à fuga aos impostos por via da sub ou sobre facturação de mercadorias, consoante o regime tributário de cada país. Se é certo que os fluxos financeiros internacionais têm, na sua base, os fluxos produtivos, défices e excedentes bilaterais têm pouco significado num mundo de fluxos de capital liberalizados, onde estes respondem sobretudo à organização do sistema financeiro internacional. Qualquer intervenção corretiva tem, por isso, que olhar para este último. Parece ser esse o objectivo do acordo de “Mar-a-Lago”, onde as tarifas assumem um papel secundário.
Queremos salvar este comércio internacional?
Se Pettis e Klein olham sobretudo para as consequências distributivas e macroeconómicas da atual organização da economia internacional, o livro de Laleh Khalili oferece uma visão exaustiva daquilo que é a “esfera oculta” do comércio marítimo internacional. Esta forma de comércio internacional concentra 90% de todo o comércio. Embora o livro se concentre na realidade da Península Arábica, Khalili oferece um exemplo da melhor investigação em ciências sociais possível, combinando história com o seu testemunho pessoal, enquanto tripulante de navios mercantes, e o estudo cuidado dos mercados de transporte marítimo, articulados com os mercados financeiros, terminando na organização do trabalho deste setor. O livro mostra-nos como os baixos preços das mercadorias que consumimos têm um alto custo social e ambiental.
Khalili começa por relembrar o imperialismo e a guerra como condições históricas para as novas rotas abertas, sempre entrelaçadas na evolução tecnológica - o contentor marítimo com a guerra do Vietnam, os grandes cargueiros com a guerra de 1967 de Israel com Egipto e consequente encerramento do canal do Suez. Presentemente, o comércio marítimo está concentrado em algumas grandes multinacionais que não se dedicam só ao transporte, mas acumulam as infraestruturas associadas aos seus hinterlands (zonas de influência geográfica), portos, estradas, ferrovias e zonas económicas especiais, concentrados no continente asiático. Roterdão, maior porto europeu, ocupava somente o 12º lugar mundial em capacidade de tonelagem, em 2027.
O tráfego marítimo é internacional, mas os preços do transporte são determinados nos centros financeiros, como Londres, bem como os seguros e crédito para a construção de barcos e infra-estruturas. O comércio depende dos centros tradicionais do poder colonial, hoje convertidos em cidades “globais” de serviços especializados e mão-de-obra qualificada. Ele foi, e continua a ser, estruturado numa hierarquia geográfica bem definida, favorável às grandes potências económicas (surpreendentemente, a portuguesa Lisnave, agora desaparecida, chegou a ser o único cais de construção de navios petroleiros de grande porte). Khalili mostra historicamente o que agora se tornou saliente. O direito internacional aplicado ao comércio é simplesmente o direito dos mais poderosos, sejam dos estados como os EUA, sejam as suas multinacionais. O direito internacional e os tribunais arbitrais dos “mundos planos” sempre protegem o sacrossanto direito à propriedade, ao mesmo tempo que despolitizam uma importante arena de disputa económica e política.
Toda esta infraestrutura global é construída e operada nas costas de uma enorme força de trabalho, migrante e racializada em hierarquias salariais e de poder, numa continuidade histórica com origem histórica no imperialismo e escravismo europeu. O transporte marítimo continua a ser o faroeste do direito de trabalho, com os navios a adoptarem a bandeira de países onde o direito de trabalho praticamente não existe, da Libéria ao Panamá. Este é um trabalho moroso, perigoso e muito mal pago (com a excepção dos oficiais e outros trabalhadores especializados, normalmente vindos da Europa e dos EUA). Antes da pandemia estimava-se o número de marinheiros mercantes em 1,6 milhões de pessoas. Curiosamente, ou talvez não, 14% são de cidadania filipina.
Conclusão
Quando agora ouvimos lamentos em relação ao fim de uma ordem económica internacional de produtos baratos vindos do outro mundo, convém ter presente as causas, consequências e processos que acompanharam e acompanham a famosa “globalização”. Talvez não tenhamos muito que lamentar. Efeitos na inflação serão inevitáveis, embora não tanto como é apregoado pois o preço das importações é só um componente do preço final das mercadorias, normalmente à volta de metade deste, e vivemos num mundo onde os cabazes de consumo, mesmo envolvendo trocas internacionais, envolvem cada vez mais serviços, do turismo à Netflix, fora do âmbito tarifário. Pelo contrário, dada a pressão para a manutenção dos seus excedentes externos como forma de ultrapassar a crise interna, a queda dos preços de mercadorias chinesas para o resto do mundo está longe de ser um cenário remoto.
Ainda assim, o consumo dos trabalhadores não pode ser negligenciado ou desprezado como inevitável custo de um outra ordem internacional. No entanto, a abordagem política ao consumo deve ser articulada com a produção, a sua organização nacional e internacional, seus processos de trabalho e impactos nos trabalhadores e ambiente. Devemos ser mais exigentes com a política, indo para lá da gestão macroeconómica e integrando a intervenção nos locais de trabalho, nos sindicatos, na administração local e central na forma como nos organizamos produtivamente. Com o trabalho no centro, as mudanças nos objetivos da produção, sua organização e distribuição primária de rendimento, corresponderá necessariamente uma mudança do padrão de consumo não dependente da exploração do trabalho. Trata-se de construir um modelo de produção que demonstre, socialmente, que "abundância" (palavra da moda) não significa apenas calças baratas, mas o acesso a uma vasta gama de serviços e produtos, da alimentação à cultura, orientada para a qualidade e satisfação cidadãs.
Esta é a forma mais eficaz de combater o poder fascizante de Trump, não chorando pela ordem liberal em risco, mas propondo a mobilização nacional dos trabalhadores contra as fracções de capital agora no poder e um programa realmente alternativo, aproveitando as brechas agora abertas. A competição entre fracções de capital norte-americana e chinesa é uma oportunidade de mobilização internacionalista, que recusa a diabolização dos trabalhadores de outros países, enquanto se mobiliza na luta contra o capital nacional e internacional por outra forma de viver.