A vitória de Trump e a luta de classes nos EUA
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Introdução
Com Trump a assumir a presidência dos EUA, vale a pena dar um passo atrás nas explicações da sua vitória e do que aí vem, para entender a viragem política nas mudanças da economia e sociedade norte-americana durante as últimas décadas. Estes subsídios à reflexão não desmerecem as análises da vitória que apontaram à conjuntura, nomeadamente, a “kryptonite” política que é a inflação e os erros políticos dos Democratas: a insistência em Biden como candidato, o desprezo com o trabalho organizado por parte da campanha de Harris, a postura neoconservadora na política externa, particularmente chocante no apoio ao genocídio na Palestina. Contudo, análises da economia norte-americana e da nova composição das lutas de classes neste país, escritas durante a primeira presidência de Trump, permitem uma interpretação mais estrutural da ascensão da extrema-direita, fornecendo algumas pistas para as transformações políticas eleitorais a que assistimos recentemente. Recorro a três livros que dão conta das profundas transformações da economia internacional nas últimas décadas e suas consequências nos EUA, tentando explicar o fenómeno político que agora, não só se repete, como se reforça, com muito expectável recomposição autoritária do Estado norte-americano.
Um regime de acumulação internacionalizada com os EUA no centro
O primeiro livro, On New Terrain: How Capital is reshaping the battleground of class war (2017), de Kim Moody, ativista laboral e académico, explica como as transformações na produção moldaram a recomposição da classe trabalhadora norte-americana e suas implicações políticas. Moody parte de uma abordagem teórica marxista clássica, na linha do economista Anwar Shaikh, para oferecer uma análise original das consequências da transformação do capitalismo.
Do lado do capital, Moody explica como ao capitalismo internacionalizado, com a produção fragmentada, não corresponde uma fragmentação do capital. O seu quadro teórico recusa qualquer ideia de monopolização enquanto redução da competição. Pelo contrário, o processo de concentração e centralização de capital das últimas décadas é descrito como parte da competição entre capitais promovido pelas novas tecnologias - dos transportes às tecnologias da informação - e a liberalização comercial. Num movimento só aparentemente contraditório, assistimos à emergência de multinacionais que dividem entre elas as fases de produção, mas centralizam e concentram capital na fase que lhes diz respeito. Por exemplo, a Apple cresce no design, marketing de telemóveis, enquanto a Foxconn concentra capital na montagem desta mercadoria, não só para a Apple, como também para os concorrentes desta. A concentração e centralização do capital foram acompanhadas por uma maior intensidade de capital na produção, sobretudo na forma investimento em capital fixo (aquele não totalmente consumido numa rotação de capital). Embora o investimento desde os anos oitenta tenha diminuído, em percentagem do PIB, o investimento em capital fixo não residencial aumentou a sua participação no PIB de 10% em 1980 para 11,7% até 2015. A acumulação fluída e flexível que nos “vendem” é uma ilusão.
A reestruturação do capital reduziu a força de trabalho, concentrada num número cada vez menor de empresas. Nesse contexto, particularmente significativo é a crescente importância relativa da logística e dos seus grandes centros nos EUA, localizados em grandes zonas metropolitanas como em Chicago, Los Angeles ou Nova Iorque, acompanhada pelo crescimento do emprego associado a esse setor. Em Chicago, por exemplo, são 150 mil e 200 mil os trabalhadores de armazéns. A logística emprega mais de três milhões de trabalhadores norte-americanos, essenciais à rotação do capital e expansão do valor (sem contar os trabalhadores do setor dos transportes).
Embora não desvalorize a emergência das cadeias globais de valor e da fragmentação internacional da produção, Moody chama a atenção para a declinação desta fragmentação no contexto nacional, norte-americano,traduzida na deslocalização da produção para estados americanos com menor proteção laboral. Ao mesmo tempo, a pressão competitiva internacional e nacional resultou num aumento da produtividade, conseguido pela automação e pelo prolongamento e intensificação do trabalho (o número de pausas no trabalho diminuiu 30% entre os anos 80 e 2000). Tais dinâmicas são apresentadas como as grandes causas da destruição de 5,7 milhões de postos de trabalho industrial, entretanto compensadas pela criação de emprego nos serviços de saúde, alimentação e cuidado, com um crescimento de 8 milhões de postos de trabalho. Estes são trabalhos precário e mal remunerado, ocupado por mão-de-obra imigrante, presentemente explorado pelas empresas ditas “tecnológicas”, através do seu software de “plataforma”. Com salários estagnados, redução da cobertura social, sobretudo de saúde é jornadas de trabalho longas, o enfraquecimento político do trabalho é um processo em curso, acelerado depois da crise financeira global (CFG).
A recomposição da classe operária nos EUA resulta, para Moody, em duas realidades políticas distintas. Por um lado, a profunda desarticulação do trabalho dificulta a sua ação política. Neste quadro de precariedade e desespero, o “centro” político deixa de ser solução, sobretudo na ressaca da crise financeira global.As posições políticas mais à direita, em Trump, e, mais à esquerda, com Bernie Sanders, irrompem no panorama norte-americano de forma inorgânica, como fenómenos de massas pouco organizados. Se não é coincidência o surgimento destes dois pólos opostos, a vitória (agora repetida) de Trump prova, desde cedo, o alinhamento político do capital com Trump, em algumas das suas fracções em 2016 e 2020, em todo o seu peso agora em 2025. Ainda assim, para Moody novas oportunidades apresentam-se à luta laboral. Uma economia com maior concentração de trabalhadores e com nós logísticos vitais que, se interrompidos, colocam em causa toda a valorização do capital, alavancando a posição de poder do trabalho. A condição para o seu sucesso é a organização sindical. Alguns passos foram dados nos últimos anos, em velhos e novos setores, do automóvel aos armazéns da Amazon. O trabalho enquanto força política nos EUA não morreu.
Novo conflito social?
No segundo livro, The New class war: saving democracy from the managerial elite, de Michael Lind (2020), o conflito social é abordado por outro prisma, social-democrata e assumidamente soberanista. Lind não ignora as mudanças recentes do capital. No entanto, partindo da fragilidade da classe trabalhadora causada pelas mudanças no capitalismo e na geopolítica internacional - o fim do medo da URSS e do comunismo -, o autor argumenta que estamos perante uma nova luta de classes não dinamizada pela oposição capital-trabalho. O desenvolvimento do capitalismo deu origem a uma nova elite, tecnocrata, formada, não só por capitalistas, mas por gestores, banqueiros, advogados, médicos, programadores de software, designers, professores universitários, etc. Esta elite, também conhecida como PMC, Professional Managerial Class, cultiva a meritocracia e não reconhece a realidade de classe. A mobilidade social é, para ela, sempre possível, particularmente pela via do mérito escolar. Liberal na economia, cosmopolita e progressista nos costumes, a PMC só reconhece barreiras à ascensão social no sexismo e no racismo. Para Lind, face a esta elite globalizada, a classe trabalhadora norte-americana estaria demasiado fragmentada e mais dividida do que nunca. Sujeita à competição entre capitais internacionalizados e do trabalho imigrantes, que a divide em linhas étnicas e raciais, a classe operária americana perdeu as suas organizações políticas (os sindicatos e partidos) e culturais de outrora (do desporto à religião).
Lind é favorável à restrição da imigração, mas a sua discussão é mais sofisticada do que os pólos de debate a que estamos habituados, entre a defesa liberal da livre circulação de pessoas e a estigmatização cultural e racista dos imigrantes, entendidos como ameaça à segurança ou ao emprego. O autor não embarca na ideia simplista de competição direta entre imigrantes e nacionais no mercado de trabalho. O conceito de análise adotado aqui é o de “mercado de trabalho dividido”, desenvolvido pela socióloga Edna Bonacich. Num esforço de mostrar as raízes económicas da discriminação racial, esta socióloga mostrou como, historicamente, determinadas ocupações, da agricultura aos serviços desvalorizados, como o cuidado, são segregadas, reservadas à mão-de-obra imigrante. Os trabalhadores nacionais oscilam, na sua ação política, entre tal tentativa de exclusão e a elevação das condições de trabalho para todos através da legislação laboral e da negociação colectiva, quando tais instrumentos estão disponíveis. Lind é céptico sobre a a nivelação por cima as condições de trabalho com a trabalhadores muito divididos. Num contexto de competição de acesso, essa sim direta, aos serviços públicos, erodidos, entre as diferentes comunidades, a articulação política fica mais difícil. O autor defende, pois, a restrição à imigração como resposta imediata para ultrapassar o mercado de trabalho dividido do presente e, assim, fortalecer a posição dos trabalhadores.
Esta análise é convergente, com o que o sociólogo Wolfgang Streeck chama de “hiperglobalização”, no seu último livro, enquanto fenómeno esvaziador da democracia. Qualquer intervenção pública progressista na economia fica dífícil, sob a vigilância e punição de um capital internacionalizado. Para Lind, Trump emerge desta caldo social e económico, na sua tríade anti-globalização, anti-elites “corruptas” e anti-multiculturalismo, conseguindo captar secções do capital norte-americano e da classe trabalhadora, contra a PMC “globalista” e os imigrantes. Esta insurgência política tem como reacção da PMC, ou o insulto às classes trabalhadoras (os “deploráveis” de Clinton e o “lixo” de Biden), ou as teorias de conspiração (Rússia de Putin). As suas respostas políticas continuam as mesmas, como a educação e mobilidade geográfica como soluções para a questão do emprego, do salário e da desigualdade, agora suplementadas por propostas como o rendimento básico universal.
Recorrendo ao famoso trilema do economista Dani Rodrik da impossibilidade de compatibilização entre internacionalização da economia, soberania nacional e democracia, Lind e Streeck apontam o nacionalismo económico como única forma de regulação dos fluxos de bens, pessoas e capital. Esta seria a condição de uma democracia soberana e pluralista, incrustada na sociedade, com organizações sociais fortes, como os sindicatos, e um estado desenvolvimentista. Streeck acrescenta ainda um mundo de pequenos estados, não imperiais, que possam copiar experiências políticas e sociais e cooperar bilateralmente.
Embora a descrição da sociedade norte-americana oferecida por Lind forneça uma imagem complexa das dinâmicas de classe, a análise cai na armadilha, muito presente no debate público, de esconder as dinâmicas do capital e do trabalho nas eventuais novas linhas divisórias. Categorias como “elites profissionais” ou PMC podem esconder tanto como iluminam. Como o próprio Lind admite, na PMC estão muitos trabalhadores longe de qualquer pretensão de elite, em condições em franca proletarização, dos enfermeiros aos professores, não por acaso das secções mais bem organizadas em sindicatos da classe trabalhadora. Neste livro, a classe de milionários e bilionários passa pelos pingos da chuva, mais uma vez refletindo de alguma forma o debate público nos moldes que ele se apresenta, onde a política de classe desapareceu em favor da luta dita “cultural”.
Outra ausência é a forma como o Estado norte-americano e a sua reconfiguração estruturam as dinâmicas de classe (uma ausência também notória na análise de Moody). A competição entre trabalhadores por serviços públicos é uma realidade, contribuindo para o ressentimento social, xenofobia e racismo. Contudo não se pode ignorar o contexto de degradação destes serviços devido à erosão fiscal dos EUA desde os anos 80, com benefícios obscenos ao capital e austeridade pública, tema de um dos melhores livros de 2024, de Melinda Cooper. Ademais, embora a retomada e o reforço da capacidade do Estado na economia seja uma possibilidade política historicamente comprovada, o oposto acontece com o controle estatal das fronteiras com o intuito da restrição à imigração. A história mostra a incapacidade pública de restrição sem consequente desastre humanitário. Se os planos de deportação em massa de Trump forem executados, teremos nova prova.
A melhor forma de regular fluxos migratórios está no estado desenvolvimentista defendido pelo próprio Lind. Ele é a parte da solução dos problemas de emprego e rendimento nos países de origem de imigrantes. Nos países de acolhimento, só o planeamento económico pode favorecer setores, como a indústria, que não dependem de mão-de-obra barata e desqualificada, como o turismo ou a construção, e que potencializam sindicatos e a negociação colectiva, contribuindo assim para o fim da “divisão” do mercado de trabalho.
Conflito social territorializado
Uma das secções mais interessantes do livro de Lind está na divisão geográfica das cidades norte-americanas entre os hubs e heartland. Nos primeiros, centros das grandes cidades, convivem a PMC e a mão-de-obra, imigrante e/ou racializada, dedicada a serviços baratos, como o trabalho doméstico, num cenário de desigualdade em que Nova Iorque é comparável com a Suazilândia. Por outro lado, a heartland, território suburbano, concentra a moradia e as atividades da classe trabalhadora industrial (e pós-industrial). É nestes vastos territórios que surgem algumas das jacqueries contemporâneas, sejam os motins dos coletes-amarelos franceses, sejam os motins do Black Lives Matters de 2013. Essa divisão geográfica e as erupções sociais são a motivação para o breve livro, escrito entre o ensaio e a autobiografia, de Phil Neel, Hinterland: the America’s New Landscape of Class and Conflict (2018).
O ponto de partida deste autor continua ser a reestruturação do capital durante os últimos quarenta anos e a sua tradução em crise social permanente, com efeitos geográficos distintos nos EUA. Como o título indica, o interesse está aqui, sobretudo, na ideia de hinterland das grandes cidades, num misto entre o mundo rural e o urbano, espaço da grande indústria, da geração de energia, de alguma produção agrícolae dos complexos logísticos americanos Contudo, Neel inicia a sua investigação nas zonas rurais do norte da Califórnia, Nevada e Oregon, ninho dos novos grupos de extrema-direita que se tornaram famosos com a invasão do Capitólio em janeiro de 2021 (Oath Keepers, Three Percenters). Nas zonas rurais empobrecidas, com serviços públicos degradados, mas com uma contínua presença do Estado, através do seu aparato securitário, trabalhadores rurais, os mais pobres do país, vivem racialmente segregados, isolados e despolitizados. Neste contexto de desolação social, Neel explica como o partido Democrata tem muito pouco para oferecer. Aqui surgem, das pequenas elites rurais, proprietárias, brancas, líderes políticos que assumem e patrocinam estes novos movimentos de extrema-direita, hoje alinhados com Trump. Numa postura libertária e de confronto permanente com a repressão do Estado, estes grupos prometem espaços autónomos, geradores de serviços colectivos e de pertença.
Por sua vez, o retrato oferecido das cidades norte-americanas, nomeadamente de Seattle, onde Neel trabalhou, é convergente com o de Moody e Lind. Uma grande cidade, estrategicamente localizada na economia global, com atividade concentrada em setores como o militar (Boeing), tecnológico (Microsoft), universitário e, hoje, logístico, localizados nos subúrbios, com uma população trabalhadora imigrante crescente (21% da população). Seattle está reduzida nos seus espaços públicos comuns, substituídos por ilhas de centros comerciais, mas espalhada num território cada vez mais vasto, onde a produção, distribuição e habitação se confundem na busca permanente por terra e mão-de-obra barata. Estas são cidades onde, além da segregação, o isolamento é marca da vida, reflexo da forma como o circuito de capital está hoje organizado.
A ação política organizada é difícil, mas o conflito social não desapareceu.A luta organizada foi substituída pelos ocasionais motins em que o próprio Neel participou, como o Black Lives Matter em Ferguson, subúrbio de St. Louis. O último caso é emblemático de uma cidade, depauperada nos seus serviços públicos pela competição fiscal, que substitui impostos por multas (20% do orçamento municipal), tendo como principal alvo a sua população racializada, em permanente assédio policial. O assédio do aparato repressivo do Estado culminou no assassinato de Michael Brown e subsequentes motins, com cobertura nacional e internacional. A violência irrompe de forma inesperada e a reação fortalece-se enquanto partido da “ordem e segurança”, tema recorrente da extrema-direita um pouco por todo o mundo.
Conclusão
O retrato político dos EUA oferecido pelos três autores fornece várias pistas para conseguirmos entender a ascensão popular de Trump e, de forma mais geral, da extrema-direita. As mudanças introduzidas na acumulação de capital por décadas de neoliberalismo deram origem a novas formas de luta de classes, sobretudo no período que se seguiu à crise financeira global, verdadeiro ponto de inflexão histórico. Domenico Losurdo, num dos seus livros, escrutina o pensamento marxista na sua análise da luta de classes, mostrando como a análise marxista sempre valorizou pluralidade destas. Daí a expressão plural usada no Manifesto Comunista, de lutas de classe. As lutas de emancipação nacional, à luta feminista ou contra o escravismo moderno, estes conflitos nunca foram entendidas como distrações da contradição capital-trabalho, mas reflexos e diferentes formas da mesma. Elas permitem-nos um quadro de análise social variegado, com nuances e diversidade, que consegue enraizar os fenómenos políticos salientes, como a ascensão da extrema-direita misógina e racista, nas divisões sociais nascidas na exploração do valor. Podemos assim descartar explicações superficiais desesperadas da elite liberal esgotada (fake news, a Rússia, o Tiktok, etc) e pensar estratégias políticas de articulação coletiva que consigam ir para lá de uma superficial adição política de lutas, entendidas como particulares, condenada à fragmentação política.
As lições para outros países onde os fenómenos de extrema-direita também prosperam, devem ser parcimoniosas. Cada país apresenta as suas especificidades e idiossincrasias, como estas análises dos EUA mostram. Ainda assim, uma das particularidades norte-americanas, negligenciada nestes livros, é a sua posição de potência hegemónica internacional, em disputa com a China. A guerra comercial iniciada por Trump, em 2017, foi o tiro de partida desta disputa tecnológica, económica e política, superando a estratégia de contenção liberal de Obama. Contudo, a oposição à ascensão económica e geopolítica chinesa reforçou-se nos anos de Biden, com a aplicação de um programa económico de relocalização e desenvolvimento industrial nos EUA, que diminuísse a dependência da economia chinesa e a ultrapassasse em determinadas tecnologias. Este foi um programa impressionante na sua escala, criador centenas de milhar de postos de trabalho industriais, onde a sindicalização já existe ou, pelo menos, será mais fácil. Todavia, a viragem política não teve tradução política no campo do trabalho. Alinhado com os interesses internacionalizados do capital norte-americano, este foi um programa económico de subsidiação direta ao capital através de créditos fiscais. O Estado produtor e provedor não existe aqui. A ausência de ganhos políticos nas classes trabalhadoras não surpreende. No entanto, o lastro político que se foi construindo nos últimos anos, de Sanders aos novos sindicatos, pode sair reforçado por esta nova classe trabalhadora industrial, estrategicamente localizada.
O que é claro, e reforçado pela tomada de posse de Trump, é o alinhamento do capital norte-americano, particularmente das suas maiores empresas “tecnológicas”, com o Estado no confronto com a China, num momento em que o capital chinês aparece como ameaça credível ao domínio internacional das grandes “tecnológicas”. O capital norte-americano certamente quer a manutenção das suas cadeias de valor global de acesso a trabalho barato, mas numa ordem internacional cada vez mais americanizada, onde a tecnologia privada e o poder público, do dólar ao poder militar, se articulam na reafirmação autoritária do império. Tempos interessantes para as lutas de classes em todo o mundo.
Aproveito o "subsídio à reflexão" para compartilhar o entendimento de que eleição de DT expôs, de fato, a condição crítica do campo do trabalho na luta de classes nos EUA, como manifestação específica da condição mundial do campo trabalho no rescaldo da globalização. Entendo que os referidos "erros dos democratas" são também consequência dessa condição, além de terem sido o equivalente de "kryptonita": os democratas foram abertamente criticados pela presidente da AFL-CIO Liz Shuler que acusou a falta de sensibilidade do partido com o trabalhador marginal, o lumpen-proletariado (o mais atingido pela criptonita da inflação). Shuler ponderou que KHarris tinha vantagem de 17 pontos entre os trabalhadores sindicalizados, mas que o lumpen votou maciçamente com DT (https://www.theguardian.com/us-news/2024/nov/16/harris-campaign-working-class-union-economy). Mesmo dentro da AFL-CIO o apoio esteve longe de ser uniforme, com a notável recusa do maior sindicato, os Teamsters (motoristas de caminhão) em endossar a candidatura democrata. Os teamsters são especialmente relevantes nos termos da resenha do livro de Moody onde se ressalta "a crescente importância relativa da logística e seus grandes centros nos EUA", bem como a dificuldade crescente em incluir no movimento sindical os milhóes de trabalhadores precariamente inseridos em serviços de saúde, alimentação e cuidados. Dificuldade de, concretamente, conseguir cidadania plena: daí a notada natureza 'inorgânica" de candidaturas "de esquerda" como Bernie Sanders. Moody conclui pela posição algo idealista de inclusão desse lumpen no movimento sindical. São certeiras as "pistas" oferecidas na Conclusão das resenhas, para a ascensão de DT e da direita em todo mundo: a globalização da produção aprofundou a desigualdade de renda em quase todo o ocidente (com a possível exceção da Alemanha) de 1995 para cá, refletindo o abismo entre as qualificações da classe "management" e a classe "trabalho direto". A impotência da grande massa trabalhadora para agir coletivamente foi ainda mais agravada pela transformação pulverizante das pautas dos trabalhadores em pautas identitárias. A raiz dessa pulverização estaria no abandono do conceito de classe pelo eurocomunismo, na visão de Ellen Meiksins-Wood em The Retreat from Class, o que parece ser validado pela citação de Losurdo, para quem as pautas identitárias seriam reflexo de pluralidade de classes sempre valorizada dentro do campo marxista. Deixo esse último ponto como possível argumento para continuar a discussão em torno dessas oportunas e bem-vindas resenhas por Nuno Teles.