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Um número recente da The Economist anunciava triunfalmente o sucesso da transição energética para a energia solar. Em 2004, a instalação de um gigawatt de capacidade solar demorava um ano. Em 2010, demorava um mês. Hoje, demora menos de dez dias. O progresso tecnológico e a queda de preços, devida às economias de escala do sector explicariam a trajetória de crescimento muito acima do esperado. O “custo nivelado de energia” solar, uma medida que procura calcular os custos líquidos presentes com diferentes fontes de forma comparável, caiu para um milésimo do custo estimado nos anos sessenta. Hoje, o custo da energia solar e eólica está em torno de 40 dólares por megawatt, face aos 50-75 dólares do carvão. Os subsídios públicos, essenciais que foram nesta indústria nascente, poderiam ser agora retirados, deixando o mercado funcionar e resolver as mudanças climáticas.
O livro do geógrafo Brett Christophers The Price is Wrong – How capitalism won’t save us oferece uma perspectiva detalhada e céptica em relação a este triunfalismo. As notícias publicadas já depois do lançamento do livro parecem dar razão a Christophers. O investimento na geração de energia renovável na Europa e no Brasil parece ter estagnado. Esta é, portanto, uma realidade paradoxal (custos decrescentes e investimento estagnado). O livro dá-nos várias pistas explicativas. O ponto de partida de Christophers é a crítica ao presente modelo de produção energética, guiado por pretensos mercados competitivos e eficientes, onde os preços sinalizam a melhor alocação para o capital. Um modelo que esquece o “lucro” enquanto motor da acumulação de capital.
Abandonando o quadro intelectual em que trabalhou nos últimos anos, o de uma economia dominada por todo o tipo de rendas e rentistas, Christophers parte dos contributos teóricos de Anwar Shaikh e Andreas Malm, dois dos autores mais influentes na economia política marxista da última década. O primeiro permite-lhe abordar a economia capitalista enquanto uma economia guiada pelo lucro, onde a competição entre capitais tem sido acirrada e não limitada, como acontece nos argumentos marxistas do capital monopolista, ou pós-keynesianos da concorrência imperfeita. Esta ruptura teórica permite uma abordagem mais robusta às dinâmicas do mercado eléctrico. O problema não está na “renda” económica causado por falta de concorrência, mas exactamente no contrário. Na ânsia de criar mercados competitivos de energia, a motivação do investimento, o lucro, desapareceu. Por outro lado, o trabalho histórico de Andreas Malm sobre o triunfo da máquina a vapor e do capital fóssil face a outras fontes de energia, mais baratas, como a água dos moinhos, sublinha como a lucratividade não é só resultado de custos e preços, determinados por coeficientes técnicos e estruturas de mercado, mas sim das relações sociais de produção que lhe estão por detrás. O carvão venceu a água como força motriz da Revolução Industrial graças à mobilidade que fornece ao capital, permitindo um reforço de poder do capital e facilitando a exploração do trabalho. Noutra dimensão, esquecida por Christophers no seu livro, mas essencial para a presente discussão, Malm mostra a dificuldade que diferentes capitais em competição demonstram em coordenar e planear colectivamente o uso de recursos não apropriáveis, como a energia da água dos rios, por mais que tivessem ganhos de eficiência produtiva.
Christophers começa por explicar como os “custos nivelados”, usados na comparação de tecnologias muito diferentes na produção de uma mesma mercadoria, são enganosos. Ao contrário do argumento convencional, os custos específicos das energias renováveis, associados à sua natureza, como a intermitência na produção ou rigidez da localização – custos de transporte ou ligação à rede não são normalmente incluídos nos custos nivelados – são aqui só parte do problema da sua aparente falta de competitividade. O que torna sombrio o futuro das renováveis em algumas regiões do globo é, sobretudo, a organização dos mercados energéticos e sua articulação com outros mercados, como o de crédito (o de trabalho está infelizmente ausente da análise). Um dos problemas está no facto de que os custos reais de produção não dizerem respeito apenas aos coeficientes técnicos de capital e trabalho, mas incluírem custos de financiamento, como a taxa de juro. Esta não é igual para formas de produzir distintas. Se financiados através do crédito, projectos de investimento baseados em capital fixo terão os seus custos necessariamente inflacionados por um aumento da taxa de juro. Já na produção mais dependente de capital circulante, como o carvão ou o gás natural, o mesmo canal de ampliação de custos será necessariamente menor. Assim, movimentos como o recente aumento das taxas de juro tem impactos diferentes em investimentos onde o grosso da despesa é feito antes ainda de se começar a produzir ou, como acontece na geração de energia fóssil, parte da despesa se distribui ao longo do tempo. Além disso, as taxas de juro não não são equalizáveis. Não existe uma só taxa. As taxas são diferentes entre empresas (Exxon versus Edp Renováveis) e entre países (Portugal vs Brasil). Finalmente, ao contrário do que acontece com a maioria dos projectos de investimento, a produção de energia renovável, talvez pela sua juventude, não é financiada pelos seus excedentes operacionais, como acontece na indústria fóssil, mas com o recurso ao crédito. As renováveis concorrem com potência instalada há anos, com custos já recuperados. A taxa de juro torna-se assim muito mais saliente. Não será um exagero afirmar que será, em norma, um qualquer banqueiro a ter a palavra final na decisão de construção de um parque eólico ou solar.
Mais interessante para a discussão de economia política talvez não sejam os custos, mas sim os lucros dos diferentes projetos de investimento. O argumento parece aqui orientado, mais uma vez, para as especificidades da sua produção. As energias renováveis são fontes de energia cuja produção está dependente das condições naturais. Com o aumento da capacidade produtiva de renováveis, a quantidade produzida vai coincidir amiúde com preços mais baixos. Quando as condições naturais são favoráveis, muito sol ou vento, a quantidade produzida aumenta e, consequentemente, o preço cai. Este é um problema que a geração de energia eléctrica de fonte fóssil não tem, podendo optar pela produção nos períodos com preços mais elevados e, logo, atingir maior taxa de lucro.
Se é certo que as condições e constrangimentos naturais das energias renováveis são o ponto de partida para a análise, o problema reside na forma como elas estão social e politicamente integradas nos mercados de energia construídos nas últimas quatro décadas. O sector eléctrico eram tido como exemplo de monopólio natural, legitimando a propriedade e gestão pública. Na ânsia privatizadora dos anos oitenta e noventa, isso mudou com a desverticalização do sector em várias atividades independentes. Geração, transmissão e distribuição ao consumidor foram separadas em diferentes mercados e empresas. Este foi um passo essencial para a criação competição na geração ou na distribuição de energia. Nesta construção, os preços são definidos pela ordem de mérito oferecidas pelos diferentes produtores, mimetizando a ideia de preço igual ao custo marginal. O preço de mercado é fixado pela proposta do produtor mais caro necessário à soma de todas as quantidades oferecidas necessárias para satisfazer o consumo de electricidade num dado momento. Mesmo que acreditemos que não existe manipulação de mercado e que os preços vão ser iguais aos custos marginais, como ensinado nas aulas de microeconomia, os custos de produção são necessariamente diferentes entre as energias fósseis e renováveis. Dada a homogeneidade do bem produzido, do ponto de vista da rendibilidade é irrelevante para a distribuidora - agora separada da produção - qual é a fonte de energia. Construíram, portanto, mercados muito voláteis que favorecem os produtores de electricidade de fonte fóssil, já que estes podem ajustar a sua produção aos preços, por mais que os seus “custos nivelados” sejam superiores aos das renováveis.
Para lá da falta de perspectivas de lucratividade que ameaçam o investimento privado futuro nas energias renováveis, Christophers descreve alguns dos desastres que este modelo produziu nos últimos anos: dos apagões no Texas durante uma frente fria, quando a energia eléctrica chegou aos 12 000 dólares por megawatt, à crise energética europeia de 2022, quando respondendo aos “sinais dos mercados”, o gás natural do Sul da Ásia foi “deslocado” para a Europa, provocando apagões generalizados no Paquistão, Índia e Bangladesh. No auge da crise, compensou pagar as multas de não cumprimento de contratos com estes países face aos lucros europeus.
Face ao atual cenário, onde o investimento na energia renovável travou e a capacidade instalada de produção eléctrica fóssil continua a aumentar, a solução parece estar na retoma e reforço dos apoios públicos às energias renováveis na forma de preços garantidos, créditos fiscais ou crédito subsidiado. Este é um modelo de redução de riscos ao investimento privado, que procura incentivar os investidores privados com poucos ou nenhuns mecanismos de disciplina, nomeadamente na necessária penalização dos combustíveis fósseis. Embora possamos ter mais investimento na geração de electricidade renovável, sem o planeamento necessário, que articule tal investimento com outras fases produtivas, a sobreprodução emerge e os gargalos multiplicam-se, como tem sido o caso.
A produção de eletricidade necessita de planeamento, coordenação e mobilização maciça de capital, algo que só o Estado consegue. Se seguirmos a útil grelha analítica deste artigo, os problemas de conhecimento, precaução e dependência de trajetória de agentes privados coordenados por mercados são facilmente traduzidos no caso da energia eléctrica em preços voláteis, lucros incertos e prevalência da indústria “fóssil” no mercado energético. De facto, a experiência histórica mostra a importância da verticalização, propriedade pública, financiamento na construção de redes robustas de provisão de electricidade. Veja-se a diferença entre o Brasil, que seguindo este modelo, com empresas públicas, como a Eletrobras e o BNDES, construiu uma rede nacional de produção e transmissão de electricidade notável, que só deixa de fora Roraima, e os EUA, que ainda hoje não consegue ter o país interligado (daí os problemas no Texas em 2021). Ainda no Brasil, vale a pena lembrar que foi a desverticalização, privatização e liberalização do setor no governo de Fernando Henrique Cardoso que levaram à quebra do investimento no sector e aos famosos apagões do início do século.
Ao contrário do que Christophers argumenta no final do seu livro, a necessidade de provisão pública de electricidade não nasce da natureza desta mercadoria, que o autor, inspirado por Karl Polanyi, afirma como fictícia que a tornaria distinta de outras mercadorias. O problema não está exclusivamente na sua materialidade ou significado histórico (energia como algo natural e essencial), mas na forma como a sua materialidade se combina com relações de produção específicas e historicamente determinadas num dado sistema de provisão, onde vários agentes (Estado, produtores, consumidores, trabalhadores) interagem. Como este artigo de Matthew Huber e Fred Stafford argumenta, a transição energética implica uma solução centralizada para os problemas técnicos de intermitência da produção de energia solar e eólica. Verticalização, propriedade pública e construção de redes eléctricas robustas e extensas são condições necessárias ao investimento nas renováveis, devidamente combinadas com outras fontes de energia com baixas emissões. Mas tal modelo de transição necessita da mobilização da classe trabalhadora para vingar. Tradicionalmente mais organizada e sindicalizada nestes sectores, só ela pode emergir um sujeito político capaz de forçar a transição energética no sentido do interesse colectivo, ao invés do lucro. Essa essencial e polémica discussão, ausente no livro de Christophers, fica prometida para um próximo artigo.