Capital, desigualdade, a crise e os meios de a esconjurar
No dia 12 de Março participei, com o João Rodrigues, num debate sobre Thomas Piketty e Karl Marx, organizado pela Associação Portuguesa de Economia Política. Este texto resume a minha exposição.
Novos e velhos Marx
São raros os livros de economia, sobretudo quando têm mais de setecentas páginas, que conseguem o estatuto de campeão de vendas. “Capital no século XXI” de Thomas Piketty conseguiu essa proeza, denunciando o aumento global das desigualdades através de um trabalho de recolha de dados de 15 anos. Contudo, a ambição e recepção do trabalho de Piketty foram para lá da questão das desigualdades económicas e formas de as debelar. O autor foi-nos apresentado como um “novo Marx”, capaz de deslindar os mecanismos do capitalismo contemporâneo, condenado o velho das barbas a ser um importante pensador, mas para o século XIX.
Não pretendendo negar a importância do trabalho de Piketty ou recensear todo o seu livro de um ponto de vista marxista (outros já o fizeram), importa revisitar o seu conceito de capital e confrontá-lo com a tradição marxista. Tentarei mostrar como concepções de capital, à la Piketty, revelam os limites de um certo entendimento do capitalismo e da actual crise pandémica e resultam em propostas políticas desadequadas, por contraponto às vantagens de adoptarmos uma perspectiva de economia política marxista.
Capital é o que cada um quiser?
A definição de capital de Piketty é bastante simples. Capital é a riqueza líquida individual, igual ao produto das poupanças no longo prazo. O capital é, por um lado, uma coisa homogénea, que se pode medir e comparar através do seu preço, sendo, por outro lado, coisas diferentes: terra, imobiliário, activos financeiros (títulos), activos industriais (máquinas). É assim assumido por Piketty que esta definição de capital é susceptível a “fugas”: a minha conta bancária é capital, mas se comprar um carro com essa conta, o meu capital desaparece.
Esta forma de tratar o capital, mais do que procurar uma definição, assenta sobretudo na conveniência do seu tratamento estatístico, recorrendo a inquéritos e balanços de empresas, ultrapassando algumas das ficções sobre estimação do stock de capital. No entanto, se a abordagem de Piketty ao capital facilita a medição do seu pretenso stock – equivalendo entre 6 a 8 vezes o PIB de cada país – ela é, na verdade, próxima da noção de capital neoclássica, que reduz a categoria à de recurso durável (mais de um ano) utilizável na produção.[1] Ora, esta forma de o conceptualizar vai ter implicações para o entendimento de Piketty da desigualdade, resultado de acumulação de riqueza em poucas mãos, cuja rendibilidade, quando superior ao crescimento económico, resulta em maior desigualdade.
A concepção de capital de Marx é radicalmente diferente. Os três livros de O Capital são dedicados a entender como o capital pode ser coisas diferentes: moeda, mercadoria, força de trabalho, meios de produção. As suas diferentes formas definem-se enquanto capital, não pelas características físicas de cada uma das suas formas, mas sim pela sua posição e relação num modo de produção particular, o capitalista. Assume-se então um modo de produção marcado pela circulação generalizada de mercadorias monetarizadas e pela separação do trabalhador em relação à propriedade dos meios de produção, condição para a sua exploração. Classe e poder aparecem como condições para a definição de capital. As diferentes formas que o capital pode tomar e sua necessária valorização ficam bastante claras nos esquemas dos circuitos do capital, apresentadas por Marx no segundo livro de O Capital: D-M-...P...- M’-D’, sendo D moeda, M mercadoria, e o apóstrofe sinalizando a expansão e valorização do capital conseguida no momento da produção (P), através da mais-valia. Simplificando, em relação à definição de Piketty, capital pode ser moeda, mas nem toda a moeda é capital - o dinheiro do meu salário que uso para comprar um carro não é, nem nunca foi, capital.
Capital e Desigualdade
Partindo da sua definição de capital enquanto riqueza, Piketty explica-nos a sua famosa fórmula para o aumento das desigualdades r>g, sendo r a taxa de rendibilidade do capital e g, a taxa de crescimento económico. Assim, com o capital atingindo entre 6 a 8 vezes o PIB, num regime de crescimento baixo, onde r ultrapassa g, os rendimentos dos mais ricos que detêm a riqueza, sobretudo herdada, irá permitir um fácil acúmulo de nova riqueza, aumentando a divergência em relação a quem tem rendimentos do trabalho, conquanto estes também estejam sujeitos a maior dispersão. Para Piketty, a questão da desigualdade resume-se a três variáveis, stock de riqueza, seu retorno e crescimento económico, interpretando períodos de redução das desigualdades (dos anos 20 aos anos 70) como tendo sido marcados por destruição de riqueza (Guerras e Depressão) e taxação e redistribuição de rendimento (New Deal e o Estado-Providência em nações europeias).
Dadas as diferenças na definição de capital, a desigualdade em Marx não é função de mais ou menos riqueza. É, à partida, uma questão de classe objectivamente definida: a burguesia e os trabalhadores distinguem-se na sua posição em relação à produção capitalista, no seu acesso a meios de produção. Mais, não só temos um ponto de partida desigual, como a produção capitalista, nas diferentes rotações de capital nos seus circuitos, ao valorizarem o capital, amplificam a desigualdade. Esta permanente pulsão de acumulação do capital é, por sua vez, necessária num contexto de competição de mercado e entre capitais, conduzindo a uma crescente centralização e concentração deste. O combate à desigualdade implica aqui a luta pela superação do modo de produção capitalista. Estas são pistas que me parecem essenciais para entendermos a dinâmica de desigualdade hoje.
Capital e a crise pandémica
Piketty tem muito pouco a dizer sobre as causas desta crise, como aliás neoclássicos e mesmo pós-keynesianos. Esta crise é entendida como tendo uma causa exógena, um vírus que perturba os mercados, como se de um meteorito se tratasse. Este ponto de partida é estranho à economia política marxista. Recusando a identidade entre capital e terra (ou recursos naturais), onde a segunda não é produzida, embora esteja sujeita à dinâmica do primeiro, conseguimos obter um quadro analítico da dinâmica de acumulação de capital e do seu carácter predatório sobre terra e recursos naturais. Ora, é a exaustão de solos, a desflorestação ou a industrialização da produção animal – factores que potenciam o contacto humano com espécies selvagens, como os morcegos, recipientes naturais de vírus – que explicam como o risco de novas pandemias tem crescido nas últimas décadas, algo a que numerosos cientistas sociais e naturais, marxistas (por exemplo, Mike Davis, Rob Wallace) ou não, já há muito nos tinha alertado.
Além de fornecer um quadro analítico para as origens da pandemia, a economia política marxista oferece-nos vários mecanismos para compreendermos a crise económica e social que agora enfrentamos. A presente crise não pode ser reduzida a um problema de procura (M’-D’), causado pela destruição de emprego e capital. A dificuldade de M’, com os seus valores de uso específicos, em se metamorfosear em D’, o equivalente universal, diz respeito também à forma como os nossos hábitos de consumo mudaram. Tal explica então que, embora a queda da procura agregada e seus efeitos deflacionários sejam inegáveis, certas mercadorias, sobretudo os bens alimentares, viram o seu preço aumentar significativamente neste último ano em países tão diferentes, como o Brasil ou Portugal, com efeitos redistributivos negativos (os mais pobres consomem relativamente mais alimentos).
Não assistimos só a uma ruptura no circuito do capital na fase M’-D’. A primeira fase D-M, onde se compram meios de produção e trabalho, sofreu dificuldades, com as cadeias globais de valor a entrarem em ruptura em muitos dos seus nós. Ainda no mês passado, ouvimos como o preço do transporte de mercadorias entre a Ásia e Europa disparou, devido aos diferentes tempos de retoma de produção entre os dois blocos regionais, com os contentores no eixo Europa-Ásia a viajarem vazios. Esta é, pois, uma crise de novo tipo. As velhas receitas do passado não são necessariamente a melhor solução para a atacar.
Quando só se tem um martelo, tudo é prego
Chegados aqui, como entender os efeitos da pandemia nas desigualdades e as formas de debelar? Piketty ao valorizar a destruição de riqueza provocada por anteriores guerras e pandemias, como a Peste Negra, afirmava numa entrevista recente ser cedo para avaliar. É verdade que se a miséria de milhões de pessoas é certa, o aumento das fortunas de bilionários parece um pouco artificial, insuflada por uma política monetária expansionista e por bolhas especulativas destinadas a rebentar. Para Piketty, os efeitos políticos são ainda indeterminados e, portanto, o melhor que podemos fazer agora é retomar as suas propostas de correcção de desigualdades pela taxação da riqueza e rendimento. O seu quadro analítico continua o mesmo, focado na questão da redistribuição de rendimento e ignorando a distribuição primária deste, entre trabalho e capital, e as transformações que o atravessam neste momento. Este entendimento da política tributária como panaceia para qualquer tipo de problema de desigualdade é infelizmente bastante comum nas esquerdas, apesar de Piketty ter avançado um pouco em direção às relações de propriedade, defendendo uma versão reciclada de socialismo utópico, através de redistribuição de activos, em Capital e Ideologia.
Numa perspectiva de economia política marxista, se é certo que temos destruição de capital e desemprego de massas, este não é um fenómeno, como já vimos, igualmente distribuído. Se é certo que as fortunas dos mais ricos podem estar parcialmente insufladas, também é verdade que observamos lucros recorde em muitas grandes empresas (por exemplo, Amazon). Estes não são só motivados por mudanças nos padrões de consumo, mas também pela aceleração dos processos de concentração e centralização de capital neste momento. Assim, se queremos reduzir desigualdades temos que defender a intervenção pública para lá da taxação. Do esforço de investimento público à desmercadorização do trabalho, passando pelo reforço dos serviços públicos. Os sectores estratégicos devem estar sob o controlo público (da energia aos bancos), não como mera “lista de compras” da esquerda, mas como alavancas para uma reestruturação da economia que responda às emergências do nosso tempo. A superação do capitalismo é o melhor guia para debelar esta crise e não cairmos na, tantas vezes repetida, mas agora particularmente pertinente, formulação de Fredric Jameson de que é mais fácil imaginarmos o fim do mundo do que o fim do capitalismo.
Livro muito recomendável que ajudou à elaboração deste texto:
“Corona, Climate, Chronic Emergency”, Andreas Malm, Verso Books
Noutros temas e meios:
Para quem quiser ouvir uma discussão sobre o suposto problema da dívida pública em tempos de pandemia, participei há uma semana neste podcast do Jornal do Negócios.